domingo, 25 de dezembro de 2011

A Outra


Ver todas aquelas pessoas me deu agonia. Nunca pensei que Luiz fosse tão popular no bairro. O choro corria frouxo ao redor do caixão. Eu não chorava, nem saía do lado dele. A possibilidade da chegada de Maria era uma coisa que me indignava. Ela era a outra, todos sabiam, creio que até a viúva, que àquela altura dormia dopada. Mas ninguém parecia pensar nisso, só eu. Já estava exausto com aquilo. Em silêncio, com os olhos rubros de ódio, eu dizia a ele que acabara com minha vida. Se Maria entrasse por aquela porta a primeira coisa que iria fazer era reivindicar o homem. Eu não suportaria ver. Se tocasse naquele caixão, eu a mataria como quem mata uma galinha. Seria um escândalo, mas eu já não me importava com nada. Minha vida nunca tinha sido discreta mesmo. A minha vida, desde quando o conheci, se transformou num inferno de luzes. Todo mundo falava na rua que o viado da 17 era apaixonado por Luiz e que não fazia força pra esconder a putaria. Eu lembro dos retalhos. Eu lembro das flores multicoloridas que eu pregava, uma a uma, na longa saia e na velha blusinha de sua mulher, as quais me pedia pra que eu vestisse. Eu vestia. Até a calcinha eu vestia, eu não me importava. Eu costurava, remendava as roupas e a dona achava que era pra ela. Se eu fiz alguma coisa pra alguém daquela casa, eu fiz pra Luiz. Foi por ele que eu aprendi a adornar dilacerações.

domingo, 11 de dezembro de 2011

My subtle cemetery (Gracias, Almodóvar)


La piel que habito
No es la piel que yo vivo
No, no es
Not even a cell
Nem os tufos desses pêlos
Nem os fios de cabelo
R E P R E S E N T M E
Oh, la piel que yo vivo
No es la piel que habito
Non, ce n'est pas
Parce que where I live
I can open these arms like this
I can open my ass at least
I can break my heart
Oh, a pele que habito
Não é só um tecido de células
Não, não é
É um campo minado
Terra árida
A pele que habito
Buracos e língua
ARAME FARPADO
Ai de mim, ai de mim...
Oh, the skin I live
Where I can live for ever
Believe me
Where I can live together
With me
Oh, la piel que habito
Es la piel que yo muero
My subtle cemetery

domingo, 4 de dezembro de 2011

Desclassificado, porém justo!



Fotografias de Robert Mapplethorpe

Toda essa classificação
Ela toda me ignora
Tô sempre fora!

A sorte minha é que sei
também ignorar

para o negócio ficar mais justo,
mais simétrico

só classifico em pequeno demais médio e grande demais
o que vai ao meu cú

que é pra manter as simetrias,
pra que a justiça seja feita!


sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

te amo

Dominick and Elliot, 1979, Robert Mapplethorpe


O teu cheiro

É o único que eu suporto

Sei que você também me suporta

Porque assim é o amor

Um jogo de tolerância

Na mais safada das relações de poder.

Não é?

O que é tudo isso, então?

O fogo aqui arde e as queimaduras são bem visíveis.

Dê uma olhada em como você me deixou depois da última trepada.

Sabe, agora vivo de te imaginar:

Só de bermuda, sem bermuda,

com aquela sua camisetinha filadaputa...

Sem nada, a não ser o cigarro e o pezinho balançando

Me olhando de olhos apertados

E eu adivinhando seus pensamentos

Com a bundinha empinada

E você vem de cigarro e pica acesos

Me pôr em brasa e prazer

Você sabe como se faz, não é?

Você sabe mais ou menos como eu gosto.

Porque o que eu gosto verdadeiramente é coisa

Tão incompreensível, meu amor.

Ah, essa louca existência...coisa ininteligível...

Meu amor, é assim, mais ou menos, que eu sou:

Tapas e cigarros, gozo e perdição.

Rio de um modo tão infantil quando penso que

És minha foda mais sem graça e a mais gostosa da minha vida...

Minha breguice colossal... minha peculiar sofisticação.

Amor da minha vida,

Sou tua maldição.

Maldito seja o acaso e aquela caminhada na Treze.

Maldito seja aquele meu ex-namorado* que me apresentou a você.

*como eu pude dar meu cú àquela moça?

Assim, condenados ao desespero e à infelicidade

Do vício do prazer,

Seguiremos,

Até o fim dos nossos dias,

Até que a vida nos separe.



quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A Galinha Degolada (Horácio Quiroga - tradução: Roberto Causo)

O dia todo, sentados no banco do pátio, ficavam os quatro filhos idiotas do casal Mazzini-Ferraz. Tinham a língua entre os lábios, os olhos estúpidos, e volviam a cabeça com a boca aberta.

O pátio era de terra, cercado a oeste por um muro de tijolos. O banco ficava paralelo ao muro, a cinco metros, e ali os quatro se mantinham imóveis, com os olhos fixos nos tijolos. O sol se ocultava por trás do muro e, ao declinar, os idiotas faziam a festa. A luz ofuscante a princípio chamava-lhes a atenção, e, pouco a pouco, os seus olhos se animavam. Riam, ao final, estrepitosamente, congestionados pela mesma hilaridade ansiosa, contemplando o sol com bestial alegria, como se ele fosse comida.

Outras vezes, perfilados no banco, zumbiam horas inteiras, imitando o bonde elétrico. Os ruídos fortes sacudiam-nos em sua inércia, e, então, eles corriam, mordendo a língua e mungindo, ao redor do pátio. Mas quase sempre estavam apagados na sombria letargia do idiotismo, e passavam o dia todo sentados no banco, com as pernas suspensas e quietas, empapando as calças com a saliva pegajosa.

O maior tinha doze anos e o menor, oito. Em todo o seu aspecto sujo e desvalido notava-se a absoluta falta do mínimo que fosse cuidado maternal.

Todavia, esses quatro idiotas haviam sido, um dia, o encanto dos pais. Aos três meses de casados, Mazzini e Berta orientaram seu íntimo amor de marido e mulher, e mulher e marido, num projeto especialmente vital: um filho. Que melhor auspício para dois apaixonados que essa honrada consagração de seu carinho, libertado do vil egoísmo de um mútuo amor sem objetivo algum e, o que é pior para o amor mesmo, sem esperanças de possível renovação?

Era o que sentiam Mazzini e Berta quando o filho chegou, após quatorze meses de casados, acreditando que a felicidade do casal estava cumprida. Era uma criatura bela e radiante até um ano e meio. Mas, no vigésimo segundo mês, numa certa noite, convulsões terríveis abalaram o menino e, na manhã seguinte, ele já não mais reconhecia os pais. O médico o examinou com essa atenção profissional de quem está visivelmente buscando as causas do mal nas enfermidades dos pais.

Depois de alguns dias, os membros paralisados recobraram o movimento. Mas a inteligência, a alma e até mesmo o instinto haviam-no abandonado para sempre. Ficara completamente idiota, babão, pendente, morto sobre os joelhos da mãe.

― Filho, meu filho querido! ― Ela soluçava sobre aquela espantosa ruína de seu primogênito.

O pai, desolado, acompanhou o médico à saída de casa.

― Ao senhor posso dizer: creio que é um caso perdido. Poderá melhorar, educar-se em tudo que a idiotia permita. Mas nada além disso.

- Sim, sim! ― assentia Mazzini. - Mas, diga-me: o senhor crê que o caso é hereditário? Que...

- Quanto à herança paterna, já lhe disse o que achava quando vi seu filho. Quanto à da mãe, tem ela um pulmão que não respira direito. Não vejo nada mais além disso, mas há uma respiração um tanto ríspida. Faça com que ela seja examinada detidamente.

Com a alma destroçada pelo remorso, Mazzini redobrou o amor ao filho, o pequeno idiota que pagava pelos excessos do avô. Ainda teve que consolar, amparar sem trégua Berta, profundamente ferida por aquele fracasso de sua jovem maternidade.

Como é natural, o casal pôs todo o seu amor na esperança de outro filho. Ele nasceu, e a saúde e limpidez do seu sorriso reacenderam o futuro extinto. Mas, aos dezoito meses de idade, as mesmas convulsões do primogênito se repetiram, e, no dia seguinte, o segundo filho despertou idiota.

Desta feita, os pais caíram em profundo desespero. Ora, seu sangue e seu amor estavam amaldiçoados! Seu amor, sobretudo! Ele contava com vinte e oito anos; ela, com vinte e dois. Mas toda esta apaixonada ternura não lograra criar um átomo de vida normal. E já não mais pediam beleza e inteligência, como sucedera no caso do primogênito, mas apenas um filho como todos!

Do novo desastre brotaram novas labaredas do amor dolorido, uma nova ânsia de redimir de uma vez para sempre a santidade de sua ternura. Vierem gêmeos e, ponto por ponto, repetiu-se o processo dos maiores.

Mas, acima de sua imensa amargura, restava a Mazzini e Berta uma grande compaixão por seus quatro filhos. Tiveram que arrancar, do limbo da mais funda animalidade, não suas almas, mas próprio o instinto abolido. Eles não sabiam deglutir, mudar de lugar, nem mesmo sentar-se. Aprenderam, finalmente, a caminhar, mas em tudo esbarravam, por não darem conta dos obstáculos. Quando eram banhados, mugiam até a face injetar-se de sangue. Animavam-se tão somente quando comiam, viam cores brilhantes ou ouviam trovões. Então riam, deitando fora a língua e rios de baba, radiantes de frenesi bestial. Tinham, em compensação, certa faculdade imitativa; mas não se pôde obter nada além disso.

Com os gêmeos parecia concluída a aterradora descendência. Mas, passados três anos, desejaram ardentemente ter outro filho, confiando em que o longo tempo transcorrido houvesse aplacado a fatalidade.

Mas não eram satisfeitas as suas esperanças. E, nesse ardente desejo, que se exasperava em razão de sua infrutuosidade, azedaram-se. Até esse momento, cada qual havia tomado sobre si a parte que lhe correspondia na miséria de seus filhos; mas a desesperança de redenção ante as quatro bestas, que haviam nascido deles, deu vazão a essa imperiosa necessidade de culpar os outros, que é patrimônio específico de corações inferiores.

Iniciaram com a mudança de pronome: seus filhos. E como, sob o insulto, havia a insídia, a atmosfera se carregava.

- Acho - disse-lhe uma noite Mazzini, que acabava de entrar e lavava as mãos -, você poderia manter os garotos mais limpos.

Berta continuou a ler, como se não tivesse ouvido.

― É a primeira vez ― replicou um pouco depois ― que o vejo preocupado com estado de seus filhos.

Mazzini voltou ligeiramente a face para ela, com um sorriso forçado.

- De nossos filhos, parece-me...

- Bem, de nossos filhos. Assim é melhor? - Ela ergueu os olhos.

Desta feita, Mazzini expressou-se claramente:

- Acho que você não dizer que a culpa é minha, vai?

- Ah, não! - Berta sorriu, muito pálida. - Mas tampouco é minha, suponho! Só faltava esta! - murmurou.

- Só faltava o quê?

- Se alguém tem culpa, não sou eu, entenda bem! Era isto o que eu queria lhe dizer!

O marido a olhou por um momento, com brutal desejo de insultá-la.

- Deixe para lá! - articulou, secando finalmente as mãos.

- Como queira! Mas se você estava querendo dizer...

- Berta!

- Como queira!

Este foi o primeiro choque e se sucederam outros. Mas nas inevitáveis reconciliações, suas almas se uniam com arrebatamento redobrado e loucura por outro filho.

Nasceu, assim, uma menina. Viveram dois anos com a angústia à flor da alma, esperando sempre outro desastre. Nada aconteceu, todavia, e os pais puseram nela toda a sua complacência, que a menina levava aos mais extremos limites do mimo e à malcriação.

Se ultimamente Berta voltara a cuidar de seus filhos, a partir do nascimento de Bertita esqueceu-se quase totalmente dos outros. Sua tão só lembrança a horrorizava, como se eles fossem algo atroz que a obrigaram a cometer. Ocorria o mesmo, mas em menor grau, com Mazzini. Mas nem por isso a paz havia chegado às suas almas. O mínimo mal-estar da filha desencadeava, com o terror de perdê-la, os rancores de sua prole podre. Haviam acumulado fel tempo demais para que o vaso não ficasse distendido e, ao menor contato, o veneno era lançado fora. Desde a primeira altercação envenenada, perderam o recíproco respeito. E, se há algo a que o homem se deixa arrastar, com cruel prazer, tal consiste, quando já se deu o primeiro impulso, em humilhar completamente uma pessoa.

Antes, eles se continham pela mútua falta de êxito; mas agora que este havia chegado, cada qual, atribuindo-o a si mesmo, sentia maior a infâmia das quatro aberrações que o outro o havia forçado a criar.

Com tais sentimentos, não havia para os quatro filhos maiores afetos possíveis. A empregada os vestia, dava-lhes de comer e punha-os na cama com visível brutalidade. Quase nunca lhes dava banho. Passavam a maior parte do dia sentados de frente para o muro, privados da mais remota carícia.

Assim, Bertita completou quatro anos e, nesta noite, como resultado das guloseimas - aos pais era absolutamente impossível negá-las -, a criancinha teve alguns calafrios e febre. E o temor de vê-la morrer, ou ficar idiota, tornou a reabrir a eterna chaga.

Fazia três horas que não se falavam e o motivo foi, como quase sempre, os fortes passos de Mazzini.

- Meu Deus! Você não pode caminhar mais levemente? Quantas vezes...

- Bem, é que me esqueço. Acabou! Não o faço de propósito.

Ela sorriu, desdenhosa:

- Não acredito tanto em você!

- Nem eu, jamais, acreditei tanto em você... tuberculosinha!

- O quê? O que disse?

- Nada!

- Sim, ouvi algo de você! Veja: não sei o que disse, mas lhe juro que prefiro qualquer coisa a ter um pai como o que você teve!

Mazzini empalideceu.

- Afinal! - murmurou com os dentes cerrados. - Afinal, víbora, você disse o que queria dizer!

- Sim, víbora, sim! Mas tenho pais sadios, escuta-me? Sadios! Meu pai não morreu em delírio. Eu poderia ter filhos como os de todo mundo! Esses são seus filhos; os quatro, seus!

Mazzini igualmente explodiu:

― Víbora tuberculosa! Isto é o que eu disse, o que quero lhe dizer. Pergunte, pergunte ao médico quem tem a maior culpa pela meningite de seus filhos: meu pai ou teu pulmão perfurado, víbora!

Continuaram cada vez com maior violência, até que um gemido de Bertita selou instantaneamente as suas bocas. À uma da manhã, a ligeira indigestão havia desaparecido, e, como ocorre fatalmente com todos os casais de jovens que se amaram intensamente pelo menos uma vez, a reconciliação chegou, tão mais efusiva quanto lacerantes foram os insultos.

Amanheceu um esplêndido dia e, ao se levantar, Berta cuspiu sangue. As emoções e a noite mal passada tinham, sem dúvida, grande culpa. Mazzini a reteve abraçada por um longo tempo, e ela chorou desesperadamente, mas sem que nenhum deles se atrevesse a dizer uma palavra.

Às dez horas, decidiram-se sair, depois do almoço. Como o tempo era curto, ordenaram à empregada que matasse uma galinha.

O dia radiante havia tirado os idiotas do banco. Assim, no momento em que a empregada degolava a galinha na cozinha, dessangrando-a lentamente - Berta havia aprendido com sua mãe este bom modo de bem conservar a frescura da carne -, acreditou sentir algo como uma respiração atrás de si. Voltou-se e viu os quatro idiotas, com os ombros colados um no outro, olhando, estupefatos, a operação... Vermelho... vermelho...

- Senhora! Os garotos estão aqui, na cozinha.

Berta chegou; não queria que eles jamais pisassem ali. E, nem mesmo nestas horas de pleno perdão, esquecimento e felicidade reconquistada, podia evitar tão horrível visão. Porque, naturalmente, quanto mais intensos eram os arrebatamentos de amor ao marido e à filha, mais irritado era o seu humor com os monstros.

- Que saiam, Maria! Ponha-os para fora! Ponha-os para fora, digo-lhe!

As pobres quatro bestas, sacudidas, brutalmente empurradas, voltaram para o banco.

Depois de almoçar, saíram todos. A empregada foi a Buenos Aires e o casal a um passeio pelas quintas. Ao cair do sol, voltaram; mas Berta quis cumprimentar por um momento as vizinhas da frente. A filha logo escapou para casa.

Entrementes, os idiotas não haviam deixado o banco durante o dia todo. O sol já havia transposto o muro, começava a afundar-se, e eles continuavam olhando os tijolos, mais inertes do que nunca.

De repente, algo se interpôs entre seu olhar e o muro. A irmã, enfadada de cinco horas de vigilância, queria agir por conta própria. Detida ao pé do muro, olhava para o alto, pensativa. Queria subir, não havia dúvida. Por fim, decidiu-se por uma de cadeira sem assento, mas não era suficiente. Recorreu, então, a uma lata de querosene, e seu instinto topográfico a orientou a aprumá-la na vertical, com o que triunfou.

Os quatro irmãos, com olhar indiferente, viram como a irmã conseguia pacientemente dominar o equilíbrio, e como, nas pontas dos pés, apoiava a garganta na plataforma do muro, entre as mãozinhas retesadas. Viram-na olhar para todos os lados, e buscar apoio com o pé, para subir ainda mais.

Mas o olhar dos idiotas havia-se animado; uma mesma luz insistente fixava-se em suas pupilas. Não afastavam os olhos da irmã, enquanto uma crescente sensação de gula bestial ia transformando cada uma das linhas de seus rostos. Lentamente avançaram até o muro. A pequena, tendo conseguido fixar um pé, já ia montar a cavalo e, seguramente, passar ao outro lado, mas sentiu-se agarrada pela perna. Debaixo dela, os oito olhos cravados nos seus lhe deram medo.

- Solte-me! Deixe-me! - gritou, sacudindo a perna. Mas foi puxada.

- Mamãe! Ai, mamãe! Mamãe, papai! - chorou imperiosamente. Ainda tentou agarrar-se à borda do muro, mas se sentiu arrancada e caiu.

- Mamãe, ai! Ma... - Não pôde gritar mais. Um deles apertou-lhe o pescoço, afastando os cachos como se fossem penas, e os outros a arrastaram por uma perna até a cozinha, onde nessa manhã haviam dessangrado a galinha, bem segura, arrancando-lhe a vida segundo por segundo.

Mazzini, na casa da frente, acreditou ter ouvido a foz da filha.

- Acho que ela lhe chama - disse a Berta.

Prestaram atenção, inquietos, mas não ouviram mais nada. Contudo, um momento depois, se despediram, e, enquanto Berta ia guardar o seu chapéu, Mazzini avançou ao pátio.

- Bertita!

Ninguém respondeu.

- Bertita - elevou mais a voz, já alterada.

E o silêncio foi tão fúnebre para o seu coração sempre aterrorizado que as costas regelaram com um horrível pressentimento.

- Minha filha! Minha filha!

Correu, já desesperado, aos fundos. Mas, ao passar em frente à cozinha, viu no chão um mar de sangue. Empurrou violentamente a porta encostada e lançou um grito de horror.

Berta, que já de sua vez já correra, ao ouvir o angustiante chamado do pai, escutou o grito e respondeu com outro. Mas, ao precipitar-se na cozinha, Mazzini, lívido como a morte, se interpôs, detendo-a.

- Não entre! Não entre!

Berta chegou a ver o chão inundado de sangue. Só pôde erguer os braços à cabeça e lançar-se ao marido num suspiro rouco.

terça-feira, 29 de novembro de 2011


Antes de dormir, penteou suas negras madeixas. Um cuidado só. Numa dessas manhãs, ao acordar, as madeixas haviam se transformado em negras serpentes. Irritadas porque presas em seu couro, mastigaram-lhe a cara e o pescoço. Aguardaram que morresse e que por fim secasse para facilitar o desprendimento. Depois de secos o crânio e a carne, secaram também as serpentes.

manhã de azeite

Fez uma flor com a massa

Desmanchou

Moldou um passarinho

O bico muito comprido,

Asas muito largas

Virou coisa sem nome ou deformada

Embebeu em azeite quente aquiloamorfo

Primeiro dourou,

Amarronzou em seguida.

Enegreceu.

Não comeria aquiloamargo

Não comeria!

Do que foi feita a tua despedida?

De um “nunca mais” entalado na garganta e um “vou morrer te amando” preso no olhar...

... porque é preciso dizer de novo... são 2:40 da manhã agora/hoje

"Não consigo dormir. São 1:40 da manhã. Às 4:50, se eu dormir, precisarei acordar. Tenho sono, mas não quero dormir. Não sei porque não quero dormir. Dormir me cansa, eu acho. Agora tantos dormem. Mais cedo, quando tantos estavam acordados, eu observava que as pessoas andam, se encontram. Observo que elas dormem também. Só as coisas inanimadas não dormem. Não dormem porque não possuem energia própria. Elas não se recarregam. Os seres vivos se recarregam, mesmo sem saber que o fazem se recarregam. É uma ordem universal o sono. Há maquinas que não param. As pessoas só param quando doam a própria energia. Doam no resto do universo. O que ou quem será que captará minha energia quando eu morrer? Mas e se eu for a minha própria energia? Então eu sou imortal. A energia, comprovadamente, não deixa de existir. Eu apenas me dôo. E não morro. Na verdade não é doação se é feito sem consentimento. Mas eu consinto então me doarei. Pronto, que alívio. Acho que vou dormir. Sou imortal. Tomara que as outras pessoas descubram isso também. Agora são 2:00 e eu só preciso dormir pouco menos de 3:00. Durante o dia ficarei sonolento. E tudo significa nada e poco imprta escrever errado. Errado é nada. Certo é nada. Por que sofrer então, se o verdadeiro significado das coisas é que elas não possuem nenhum significado? Significam pra mim e para o resto da humanidade. Mas, na verdade, nada significam. Mas posso gostar e não gostar das coisas que sinto. A dor significa. O prazer significa. Eu não significo. As coisas se significam pra mim. As coisas que se significam pra mim. Que alívio de novo. Não tenho culpa de nada. O prazer não sou eu, a dor também. Eu não tenho culpa e nada. Que bom. "Non rien de rien... non je ne regrette rien..." que bom, que alívio..."

Dona Doida (Adélia Prado)

Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso

com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.

Quando se pôde abrir as janelas,

as poças tremiam com os últimos pingos.

Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,

decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.

Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,

trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.

A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,

com sombrinha infantil e coxas à mostra.

Meus filhos me repudiaram envergonhados,

meu marido ficou triste até a morte,

eu fiquei doida no encalço.

Só melhoro quando chove.

Resignação



Os automóveis sumiram da face da Terra. As pessoas todas se esconderam no ermo de alguma galáxia não descoberta. Silêncio. Nada se permitia ser ouvido quando, no quarto, um Cristo pálido fitava os olhos na parede a sua frente, na cabeceira da cama a cinco palmos de distância abaixo de si e na gravura desbotada de uma cidade arbórea, sustentada por um abajur sobre o criado mudo. O buraco escuro nas costelas, ao qual fora condenado quando lhe fincaram a lança, comia lento e crônico seu pequeno corpo antigo. As pontas dos dedos dos pés, frágeis e corroídas, desnudavam a carne vermelho amarronzada, a carne dura que se desfazia com o toque do tempo. Ali, com a alma presa no barro, com a cara clemente e disforme, o cristo morria há décadas, aguardando a redenção.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

argumentum ornithologicum (Borges, Jorge Luis, 1960)

"Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo, talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido seu número? O problema envolve o da existência de Deus. Se Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros vi. Se Deus não existe, o número é indefinido, porque ninguém conseguiu fazer a conta. Nesse caso, vi menos de dez pássaros (digamos) e mais de um , mas não vi nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três ou dois pássaros. Vi um número entre dez e um, que não é nove, oito, sete, seis, cinco et cetera. Esse número é inconcebível; ergo, Deus existe."

Robert Mapplethorpe

Brian Ridley and Lyle Heeter, 1979

Robert Mapplethorpe

SELF-PORTRAIT, 1978



O mal do transbordamento


Henrique disse a mulher que sofria do mal do transbordamento. A conversa durou horas, ela concluiu já perto de deitar que era papo furado, que o marido tentava era engabelá-la, dando uma de pirado. Não tinha sido a primeira vez que ele inventava coisas, afinal. A mulher se arrepiava com as histórias, mas no final achava sempre que não passava de invenção de uma mente fértil e criativa. Com a história do transbordamento ela teve outra percepção, tava na cara que de uma vez por todas Henrique tinha enlouquecido. Aquilo já tinha passado a léguas de todos os limites. Ontem à noite, disse a ela que não era suor o que jorrava de seus poros, que às vezes sentia a pele como se a estourar, liberando água. Cansada das histórias, adormeceu. Foi quando, durante a madrugada, do banheiro, ele gritou por ela pedindo socorro. Ela acordou num susto medonho. Quando apareceu à porta, os dois globos oculares do homem estavam no chão, flutuando sobre a água. Água que se vertia tórrida e caudalosa dos ocos dos olhos. A pele estava uma só bolha, uma bolha gigante como em uma grande queimadura. Mas não havia fogo em parte alguma. Só água, muita água, quente e abundante. A mulher segurou-lhe pelos braços que se desfizeram imediatamente. Pegou-lhe o tronco que logo se esvaiu em líquido incolor e inodoro. Aos poucos, sem que ela nada pudesse fazer, Henrique desapareceu no chão do banheiro. Não havia mais um dente, um fio de cabelo sequer para provar-lhe a existência. A mulher, absorta, rondou com os olhos todo o banheiro, depois o quarto, mas nada. Toda a água, pouco a pouco, procurou o ralo, negro e silencioso, embaixo da pia.

privada

O engomadinho
O cigarro
O zíper aberto
A punheta apressada
A bituca
A descarga
A palavra entalada

sábado, 26 de novembro de 2011



As sílabas e as vírgulas
Reluzem como setas sinistras
Revelando teu beco, tua pica.
Com gosto na boca de seu cu,
Entreteço as palavras,
Esse caminho de amargura.
Enrola em meus dedos
A rubra língua maldita,
Demoníaca criatura.
Tua bunda é um vale e eu sou
O PÁSSARO.
Entorna tuas águas em mim, entorna.

Sônia me negou um sorriso

O pai dela era todo bondoso e tímido. Sônia o chamava de paizinho. Nós éramos amigos e brincávamos muito, o dia inteiro. Éramos unha e carne. Mas depois, ainda nessa época, ela se fechou. Um dia, subíamos a goiabeira do quintal da casa deles, quando o pai chegou do trabalho. Todo nervoso chamou Sônia para dentro e me fez pular a cerca que separava nossos quintais. Trancou a porta e ligou a vitrola no último volume. Ele era fãn do Nelson Gonçalves e, na maior altura, pôs “Negue”. Foi a primeira vez que a ouvi. Entre uma palavra e outra da música, eu escutava os gemidos de Sônia. Ela parecia apanhar, ou coisa assim. Gemia desconfortada, essa era a impressão. Como se estivesse incomodada. Escondido atrás das bananeiras, eu a vi sair um tempo depois, com a cara encharcada de lágrimas. Depois desse dia, ela se fechou e nunca mais sorriu pra mim.

peloco

Uma vez,
Embaixo da cama de minha avó,
Achei uma caixinha azul de metal.
Ali, um vidrinho de perfume
em formato de coração,
um relógio de bolso dourado e fotografias.
De repente, uma voz:
"Peloco de vó, venha comer!"
De susto, ligeiro, a tranquei.
Vinte e sete anos se passaram.
Sensação outro dia de que perdi coisa minha
Lá dentro.
Descobri que peloco é filhote de pássaro.
E que, quando fechei a pequena caixa,
Esqueci dentro dela as minhas asinhas.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Na janela

No fundo de seu flat, uma gota pingava sobre a superfície limpa e seca da pia da cozinha. Não havia mais pratos por lavar, nem talheres e pires. As xícaras estavam todas guardadas no armário. O chão brilhava. No ar uma lavanda, um cheiro bom de lírios. Na janela do apartamento, naquela cidade imensa, estava a moça. Que não era para estar ali, no ermo do mundo, na verdade. Era moça pra ser vista, ter-lhe envios de beijos e sorrisos, ser musa dos sonhos, dos poemas e músicas dos outros. Não era a moça feia da música do Chico. Não, não era. Era menina por demais bonita, no lugar errado. Se alguém pudesse vê-la. Mas aquela era uma cidade graúda demais. Pra que isso tudo? Uma cidade de ninguém pra uma moça tão grande como ela. Um desperdício pra humanidade. Ela nada precisava além de um canto nas vistas dos outros. Aí sim, neguinho ia ver. Mas ali na janela a pessoa é ninguém demais. Até pra ela que é tanta coisa.

Das coisas sobre as quais mais escrevia no caderninho de notas, um caderno resguardado, sem borrões, letras jeitosas, pronto para ser desvendado, saudade e felicidade eram as mais comentadas. Estavam nas poesias, nas marchinhas compostas na cabeça da moça. É que para ela, enfatizava, “saudade não é felicidade”. Saudade é sentimento longe que dói perto, cravado na pele. Felicidade, não. Felicidade era “uma coisa outra”. Palavras que não rimam. Felicidade se sente perto de perto. Mas era coisa sentida lá fora, na calçada, não ali dentro. No peito daquele menino, na cara daquela mulher. O que tinha para fazer era pintar e escrever. Dava um prazer pintar, deslizar o pincel. Triste era guardar os quadros, fechar o caderno, deitar na cama e não dormir. Pintar e escrever eram a passagem rápida da felicidade por ali. Coisa de instantes, nem percebida pela moça.

Estava pintando uma menina observando um peixinho dourado no aquário quando pensou em sair e comprar mais tintas, solventes e pincéis. Sentou-se sobre a cama com um vidro de perfume nas mãos. Inerte por alguns segundos decidiu abri-lo. Pôs uma gota num dos pulsos e esfregou-os um contra o outro. Um pouco também atrás das orelhas e entre os seios. Por onde andasse levaria um cheiro bom de flores miúdas. Pra que mais? Na rua, na loja, no mercado de flores, que diferença faria? A chuva está chegando. Disse ela em murmúrios, sem que alguém pudesse ouvir. Medo que a chamassem de louca. Gente reunida ali perto. Bebiam e conversavam. Repetiu como se a contar um segredo sórdido às orelhas do vento: a chuva está chegando. Ouviu o tilintar das taças e o comprimir das gargantas. De repente, misturando-se ao doce aroma do vinho, um forte odor de lama. Era hora de voltar.

O ônibus chacoalhava e as janelas tremiam. Chovia pesado. Ela tentava se segurar nas barras de ferro, e falar ao mesmo tempo com o cobrador. Falou uma coisa que ele não conseguiu ouvir. “O que você disse?” Sua voz pequena era sonzinho insignificante ante a barulheira do trânsito, dos motores e das vozes mais altas. O ônibus parou na esquina, ela desceu e, da calçada, olhou para cima, para janela do apartamento. Estava trancada. Dentro, o vazio mais completo. Foi até o quarto, sentou-se sobre a cama. Estava tarde. Era quase meia noite. O que tanto fazia na rua? Trovejou. O barulho a despertou da letargia de si. O barulho foi ensurdecedor. Com uma alegria nervosa, pendeu o corpo para o lado. Encostou a cabeça sobre os lençóis amarrotados e pensou “quando eu morrer tomara que eu lembre antes de pensar numa coisa boa, que é pra eu sonhar com ela.”

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Há dias em que eu me afasto.

E nesses dias eu morro.

Gente morta não aparece pra todo mundo.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O segredo da galinha

Eu sempre achei que minha avó tinha algum defeito na cabeça, só não sabia o qual. Uma vez encasquetou com uma galinha na estante dos livros. Uma galinha de porcelana, branca e preta. Ela se balançava na cadeira de balanço de olho na galinha e a galinha de olho nela. Teve vontade de rumá-la ao chão de tanta raiva da danada, de olhos apertados a fitá-la. Era sentar para o ponto de cruz que a bicha se eriçava. Só faltava cacarejar. Se livra dessa peste, Catiana, ou dou um trato – rezingava rouca. Mas minha mãe, assim como eu, não via nada demais naquele bibelô, a não ser o fato de que estava velho e remendado. Passava um tempo e aquilo da minha avó passava. Aí andava pela casa como se nem percebesse a galinha. Até brincar de boneca brincava. Depois era um tal de limpar os cantos. Um tal de passar pano, de lavar banheiro. Minha mãe se irritava com medo de ela se arrebentar numa queda. Mas minha avó era danada demais. Parecia menina querendo ajudar a mãe na limpeza da casa. Embora não tivesse mãe, embora não fosse mais filha.

Era, de uma hora pra outra, que inventava de bordar as toalhas. Primeiro as de banho, depois as de mesa, depois nossas roupas. Tirava tudo dos armários. Minha mãe ficava azeda. E eu ria, só ria, mas nada entendia. Quando colocava tudo encima do colo e começava a tecer letras e animais, ela parecia uma mulher velha, de cara fechada e olhar apertado sobre o tecido e a agulha. Nada que lhe fosse perguntado era respondido. Minha mãe, esquecida como ela só, não tirava a galinha do lugar. Ela era quem não entendia nada. E minha avó, acho que medrosa, não ousava tocá-la. De longe, dava língua e dedo, xingava. Só uma vez, quando se encheu de coragem, arremessou o novo testamento, mas errou a mira. Podem não acreditar, mas, nessa hora, eu jurei ter visto a galinha rolar sobre os livros dando gargalhadas ruidosas. Não seria louco de dizer a minha mãe. Mas depois de um tempo, a galinha só enganava a ela. Eu e minha avó guardávamos cada um em sua solidão, o segredo da galinha. Só nós sabíamos que a galinha era a encrenqueira, que era ela quem primeiro espichava os olhos, só pra chatear.

Chegou um tempo em que minha avó, já fraca e de ossos que eram puro pó, mal agüentava o senta-levanta da cadeira, nem forças tinha pra outra vez tentar dar um jeito naquele demônio galináceo. Mas eu, já crescido, vi minha paciência ir embora com os anos. Foi quando uma vez ela resolveu ser meu algoz. Me encarava de um modo esquisito, com fúria no olhar miúdo. Desdenhava, pintava e bordava. Mas com comigo o buraco era mais embaixo. Quando nem mesmo eu esperava peguei a galinha com uma só mão e numa só vez, taquei-a contra o chão com toda força. Ela se repartiu em pedacinhos, ficou que era só poeira. Não sabia o que era bico, o que era asa, o que era olho. Nesse dia, vi brotar meio sorriso na boca murcha da minha avó que logo logo começou a se balançar na cadeira e a cantarolar baixinho. Ria sozinha pela casa como quem ria pra alguém. Era um tal de perguntar pelas bonecas e de tagarelar sem fim. Todos na casa estranhavam minha avó. No bairro a chamavam de doida. Mas há muito eu sei que minha avó não era louca, era menina cuja vida se tornou um inferno por culpa daquela galinha esquisita.