terça-feira, 29 de novembro de 2011


Antes de dormir, penteou suas negras madeixas. Um cuidado só. Numa dessas manhãs, ao acordar, as madeixas haviam se transformado em negras serpentes. Irritadas porque presas em seu couro, mastigaram-lhe a cara e o pescoço. Aguardaram que morresse e que por fim secasse para facilitar o desprendimento. Depois de secos o crânio e a carne, secaram também as serpentes.

manhã de azeite

Fez uma flor com a massa

Desmanchou

Moldou um passarinho

O bico muito comprido,

Asas muito largas

Virou coisa sem nome ou deformada

Embebeu em azeite quente aquiloamorfo

Primeiro dourou,

Amarronzou em seguida.

Enegreceu.

Não comeria aquiloamargo

Não comeria!

Do que foi feita a tua despedida?

De um “nunca mais” entalado na garganta e um “vou morrer te amando” preso no olhar...

... porque é preciso dizer de novo... são 2:40 da manhã agora/hoje

"Não consigo dormir. São 1:40 da manhã. Às 4:50, se eu dormir, precisarei acordar. Tenho sono, mas não quero dormir. Não sei porque não quero dormir. Dormir me cansa, eu acho. Agora tantos dormem. Mais cedo, quando tantos estavam acordados, eu observava que as pessoas andam, se encontram. Observo que elas dormem também. Só as coisas inanimadas não dormem. Não dormem porque não possuem energia própria. Elas não se recarregam. Os seres vivos se recarregam, mesmo sem saber que o fazem se recarregam. É uma ordem universal o sono. Há maquinas que não param. As pessoas só param quando doam a própria energia. Doam no resto do universo. O que ou quem será que captará minha energia quando eu morrer? Mas e se eu for a minha própria energia? Então eu sou imortal. A energia, comprovadamente, não deixa de existir. Eu apenas me dôo. E não morro. Na verdade não é doação se é feito sem consentimento. Mas eu consinto então me doarei. Pronto, que alívio. Acho que vou dormir. Sou imortal. Tomara que as outras pessoas descubram isso também. Agora são 2:00 e eu só preciso dormir pouco menos de 3:00. Durante o dia ficarei sonolento. E tudo significa nada e poco imprta escrever errado. Errado é nada. Certo é nada. Por que sofrer então, se o verdadeiro significado das coisas é que elas não possuem nenhum significado? Significam pra mim e para o resto da humanidade. Mas, na verdade, nada significam. Mas posso gostar e não gostar das coisas que sinto. A dor significa. O prazer significa. Eu não significo. As coisas se significam pra mim. As coisas que se significam pra mim. Que alívio de novo. Não tenho culpa de nada. O prazer não sou eu, a dor também. Eu não tenho culpa e nada. Que bom. "Non rien de rien... non je ne regrette rien..." que bom, que alívio..."

Dona Doida (Adélia Prado)

Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso

com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.

Quando se pôde abrir as janelas,

as poças tremiam com os últimos pingos.

Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,

decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.

Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,

trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.

A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,

com sombrinha infantil e coxas à mostra.

Meus filhos me repudiaram envergonhados,

meu marido ficou triste até a morte,

eu fiquei doida no encalço.

Só melhoro quando chove.

Resignação



Os automóveis sumiram da face da Terra. As pessoas todas se esconderam no ermo de alguma galáxia não descoberta. Silêncio. Nada se permitia ser ouvido quando, no quarto, um Cristo pálido fitava os olhos na parede a sua frente, na cabeceira da cama a cinco palmos de distância abaixo de si e na gravura desbotada de uma cidade arbórea, sustentada por um abajur sobre o criado mudo. O buraco escuro nas costelas, ao qual fora condenado quando lhe fincaram a lança, comia lento e crônico seu pequeno corpo antigo. As pontas dos dedos dos pés, frágeis e corroídas, desnudavam a carne vermelho amarronzada, a carne dura que se desfazia com o toque do tempo. Ali, com a alma presa no barro, com a cara clemente e disforme, o cristo morria há décadas, aguardando a redenção.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

argumentum ornithologicum (Borges, Jorge Luis, 1960)

"Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo, talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido seu número? O problema envolve o da existência de Deus. Se Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros vi. Se Deus não existe, o número é indefinido, porque ninguém conseguiu fazer a conta. Nesse caso, vi menos de dez pássaros (digamos) e mais de um , mas não vi nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três ou dois pássaros. Vi um número entre dez e um, que não é nove, oito, sete, seis, cinco et cetera. Esse número é inconcebível; ergo, Deus existe."

Robert Mapplethorpe

Brian Ridley and Lyle Heeter, 1979

Robert Mapplethorpe

SELF-PORTRAIT, 1978



O mal do transbordamento


Henrique disse a mulher que sofria do mal do transbordamento. A conversa durou horas, ela concluiu já perto de deitar que era papo furado, que o marido tentava era engabelá-la, dando uma de pirado. Não tinha sido a primeira vez que ele inventava coisas, afinal. A mulher se arrepiava com as histórias, mas no final achava sempre que não passava de invenção de uma mente fértil e criativa. Com a história do transbordamento ela teve outra percepção, tava na cara que de uma vez por todas Henrique tinha enlouquecido. Aquilo já tinha passado a léguas de todos os limites. Ontem à noite, disse a ela que não era suor o que jorrava de seus poros, que às vezes sentia a pele como se a estourar, liberando água. Cansada das histórias, adormeceu. Foi quando, durante a madrugada, do banheiro, ele gritou por ela pedindo socorro. Ela acordou num susto medonho. Quando apareceu à porta, os dois globos oculares do homem estavam no chão, flutuando sobre a água. Água que se vertia tórrida e caudalosa dos ocos dos olhos. A pele estava uma só bolha, uma bolha gigante como em uma grande queimadura. Mas não havia fogo em parte alguma. Só água, muita água, quente e abundante. A mulher segurou-lhe pelos braços que se desfizeram imediatamente. Pegou-lhe o tronco que logo se esvaiu em líquido incolor e inodoro. Aos poucos, sem que ela nada pudesse fazer, Henrique desapareceu no chão do banheiro. Não havia mais um dente, um fio de cabelo sequer para provar-lhe a existência. A mulher, absorta, rondou com os olhos todo o banheiro, depois o quarto, mas nada. Toda a água, pouco a pouco, procurou o ralo, negro e silencioso, embaixo da pia.

privada

O engomadinho
O cigarro
O zíper aberto
A punheta apressada
A bituca
A descarga
A palavra entalada

sábado, 26 de novembro de 2011



As sílabas e as vírgulas
Reluzem como setas sinistras
Revelando teu beco, tua pica.
Com gosto na boca de seu cu,
Entreteço as palavras,
Esse caminho de amargura.
Enrola em meus dedos
A rubra língua maldita,
Demoníaca criatura.
Tua bunda é um vale e eu sou
O PÁSSARO.
Entorna tuas águas em mim, entorna.

Sônia me negou um sorriso

O pai dela era todo bondoso e tímido. Sônia o chamava de paizinho. Nós éramos amigos e brincávamos muito, o dia inteiro. Éramos unha e carne. Mas depois, ainda nessa época, ela se fechou. Um dia, subíamos a goiabeira do quintal da casa deles, quando o pai chegou do trabalho. Todo nervoso chamou Sônia para dentro e me fez pular a cerca que separava nossos quintais. Trancou a porta e ligou a vitrola no último volume. Ele era fãn do Nelson Gonçalves e, na maior altura, pôs “Negue”. Foi a primeira vez que a ouvi. Entre uma palavra e outra da música, eu escutava os gemidos de Sônia. Ela parecia apanhar, ou coisa assim. Gemia desconfortada, essa era a impressão. Como se estivesse incomodada. Escondido atrás das bananeiras, eu a vi sair um tempo depois, com a cara encharcada de lágrimas. Depois desse dia, ela se fechou e nunca mais sorriu pra mim.

peloco

Uma vez,
Embaixo da cama de minha avó,
Achei uma caixinha azul de metal.
Ali, um vidrinho de perfume
em formato de coração,
um relógio de bolso dourado e fotografias.
De repente, uma voz:
"Peloco de vó, venha comer!"
De susto, ligeiro, a tranquei.
Vinte e sete anos se passaram.
Sensação outro dia de que perdi coisa minha
Lá dentro.
Descobri que peloco é filhote de pássaro.
E que, quando fechei a pequena caixa,
Esqueci dentro dela as minhas asinhas.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Na janela

No fundo de seu flat, uma gota pingava sobre a superfície limpa e seca da pia da cozinha. Não havia mais pratos por lavar, nem talheres e pires. As xícaras estavam todas guardadas no armário. O chão brilhava. No ar uma lavanda, um cheiro bom de lírios. Na janela do apartamento, naquela cidade imensa, estava a moça. Que não era para estar ali, no ermo do mundo, na verdade. Era moça pra ser vista, ter-lhe envios de beijos e sorrisos, ser musa dos sonhos, dos poemas e músicas dos outros. Não era a moça feia da música do Chico. Não, não era. Era menina por demais bonita, no lugar errado. Se alguém pudesse vê-la. Mas aquela era uma cidade graúda demais. Pra que isso tudo? Uma cidade de ninguém pra uma moça tão grande como ela. Um desperdício pra humanidade. Ela nada precisava além de um canto nas vistas dos outros. Aí sim, neguinho ia ver. Mas ali na janela a pessoa é ninguém demais. Até pra ela que é tanta coisa.

Das coisas sobre as quais mais escrevia no caderninho de notas, um caderno resguardado, sem borrões, letras jeitosas, pronto para ser desvendado, saudade e felicidade eram as mais comentadas. Estavam nas poesias, nas marchinhas compostas na cabeça da moça. É que para ela, enfatizava, “saudade não é felicidade”. Saudade é sentimento longe que dói perto, cravado na pele. Felicidade, não. Felicidade era “uma coisa outra”. Palavras que não rimam. Felicidade se sente perto de perto. Mas era coisa sentida lá fora, na calçada, não ali dentro. No peito daquele menino, na cara daquela mulher. O que tinha para fazer era pintar e escrever. Dava um prazer pintar, deslizar o pincel. Triste era guardar os quadros, fechar o caderno, deitar na cama e não dormir. Pintar e escrever eram a passagem rápida da felicidade por ali. Coisa de instantes, nem percebida pela moça.

Estava pintando uma menina observando um peixinho dourado no aquário quando pensou em sair e comprar mais tintas, solventes e pincéis. Sentou-se sobre a cama com um vidro de perfume nas mãos. Inerte por alguns segundos decidiu abri-lo. Pôs uma gota num dos pulsos e esfregou-os um contra o outro. Um pouco também atrás das orelhas e entre os seios. Por onde andasse levaria um cheiro bom de flores miúdas. Pra que mais? Na rua, na loja, no mercado de flores, que diferença faria? A chuva está chegando. Disse ela em murmúrios, sem que alguém pudesse ouvir. Medo que a chamassem de louca. Gente reunida ali perto. Bebiam e conversavam. Repetiu como se a contar um segredo sórdido às orelhas do vento: a chuva está chegando. Ouviu o tilintar das taças e o comprimir das gargantas. De repente, misturando-se ao doce aroma do vinho, um forte odor de lama. Era hora de voltar.

O ônibus chacoalhava e as janelas tremiam. Chovia pesado. Ela tentava se segurar nas barras de ferro, e falar ao mesmo tempo com o cobrador. Falou uma coisa que ele não conseguiu ouvir. “O que você disse?” Sua voz pequena era sonzinho insignificante ante a barulheira do trânsito, dos motores e das vozes mais altas. O ônibus parou na esquina, ela desceu e, da calçada, olhou para cima, para janela do apartamento. Estava trancada. Dentro, o vazio mais completo. Foi até o quarto, sentou-se sobre a cama. Estava tarde. Era quase meia noite. O que tanto fazia na rua? Trovejou. O barulho a despertou da letargia de si. O barulho foi ensurdecedor. Com uma alegria nervosa, pendeu o corpo para o lado. Encostou a cabeça sobre os lençóis amarrotados e pensou “quando eu morrer tomara que eu lembre antes de pensar numa coisa boa, que é pra eu sonhar com ela.”