quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Na janela

No fundo de seu flat, uma gota pingava sobre a superfície limpa e seca da pia da cozinha. Não havia mais pratos por lavar, nem talheres e pires. As xícaras estavam todas guardadas no armário. O chão brilhava. No ar uma lavanda, um cheiro bom de lírios. Na janela do apartamento, naquela cidade imensa, estava a moça. Que não era para estar ali, no ermo do mundo, na verdade. Era moça pra ser vista, ter-lhe envios de beijos e sorrisos, ser musa dos sonhos, dos poemas e músicas dos outros. Não era a moça feia da música do Chico. Não, não era. Era menina por demais bonita, no lugar errado. Se alguém pudesse vê-la. Mas aquela era uma cidade graúda demais. Pra que isso tudo? Uma cidade de ninguém pra uma moça tão grande como ela. Um desperdício pra humanidade. Ela nada precisava além de um canto nas vistas dos outros. Aí sim, neguinho ia ver. Mas ali na janela a pessoa é ninguém demais. Até pra ela que é tanta coisa.

Das coisas sobre as quais mais escrevia no caderninho de notas, um caderno resguardado, sem borrões, letras jeitosas, pronto para ser desvendado, saudade e felicidade eram as mais comentadas. Estavam nas poesias, nas marchinhas compostas na cabeça da moça. É que para ela, enfatizava, “saudade não é felicidade”. Saudade é sentimento longe que dói perto, cravado na pele. Felicidade, não. Felicidade era “uma coisa outra”. Palavras que não rimam. Felicidade se sente perto de perto. Mas era coisa sentida lá fora, na calçada, não ali dentro. No peito daquele menino, na cara daquela mulher. O que tinha para fazer era pintar e escrever. Dava um prazer pintar, deslizar o pincel. Triste era guardar os quadros, fechar o caderno, deitar na cama e não dormir. Pintar e escrever eram a passagem rápida da felicidade por ali. Coisa de instantes, nem percebida pela moça.

Estava pintando uma menina observando um peixinho dourado no aquário quando pensou em sair e comprar mais tintas, solventes e pincéis. Sentou-se sobre a cama com um vidro de perfume nas mãos. Inerte por alguns segundos decidiu abri-lo. Pôs uma gota num dos pulsos e esfregou-os um contra o outro. Um pouco também atrás das orelhas e entre os seios. Por onde andasse levaria um cheiro bom de flores miúdas. Pra que mais? Na rua, na loja, no mercado de flores, que diferença faria? A chuva está chegando. Disse ela em murmúrios, sem que alguém pudesse ouvir. Medo que a chamassem de louca. Gente reunida ali perto. Bebiam e conversavam. Repetiu como se a contar um segredo sórdido às orelhas do vento: a chuva está chegando. Ouviu o tilintar das taças e o comprimir das gargantas. De repente, misturando-se ao doce aroma do vinho, um forte odor de lama. Era hora de voltar.

O ônibus chacoalhava e as janelas tremiam. Chovia pesado. Ela tentava se segurar nas barras de ferro, e falar ao mesmo tempo com o cobrador. Falou uma coisa que ele não conseguiu ouvir. “O que você disse?” Sua voz pequena era sonzinho insignificante ante a barulheira do trânsito, dos motores e das vozes mais altas. O ônibus parou na esquina, ela desceu e, da calçada, olhou para cima, para janela do apartamento. Estava trancada. Dentro, o vazio mais completo. Foi até o quarto, sentou-se sobre a cama. Estava tarde. Era quase meia noite. O que tanto fazia na rua? Trovejou. O barulho a despertou da letargia de si. O barulho foi ensurdecedor. Com uma alegria nervosa, pendeu o corpo para o lado. Encostou a cabeça sobre os lençóis amarrotados e pensou “quando eu morrer tomara que eu lembre antes de pensar numa coisa boa, que é pra eu sonhar com ela.”

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