quarta-feira, 21 de agosto de 2013

"Tu não te moves de ti" - eu sou o tempo e me movo em mim.




"Pra onde vão os trens, meu pai?

Para Mahal, Tamí, para Camirí, espaços
no mapa, e depois o pai ria: também
pra lugar algum meu filho, tu podes
ir e ainda que se mova o trem
tu não te moves de ti."

Assim, como se fosse muito fácil, Hilda da início à sua prosa "Tu não te moves de ti". Mas não é sobre o livro que quero falar pra quem sei lá eu vai ler um dia. Há poucos minutos fui ao Paraguai, pela segunda vez em uma semana. Na primeira vez fui comprar uma lente melhor pra minha câmera. Na segunda vez alguns niños me perguntaram "que procuras?" - respondi: nada. 


Mastigando bagos de tangerina, pensei que quanto mais espaços no mapa eu percorro, mais claro se torna o tempo que descubro - que não existe em horas e minutos e segundos. O tempo, na verdade, é a pura dinâmica das coisas - seus contatos e efeitos. O tempo é o gato arranhando a árvore, para ser mais simples. Eu sou o tempo e me movo em mim, sem pôr os pés pra fora. Me mover de mim, penso que nunca serei capaz. Mas me mover em mim é o que me mantem vivo - e pra isso, só me movendo no mundo. 


Eu quero e preciso viver.


Tiago


Ps.: Estou no meio da leitura do livro da Hilda. Até o final é provável que descubra que o agora acabo de escrever nada tenha a ver com ele. Mas com muita sinceridade vos digo: pouco me importa. 

domingo, 11 de agosto de 2013

Fotomontagem: Man Ray

O discurso dói a cabeça e o peito...
Ele, entretanto
 Entre tantos, 
Desaparece na fala...

domingo, 30 de junho de 2013

JEOVÁ DEUS (I)



A ardência no meu coração já era Jeová Deus se apoderando do que era dele, sem que eu percebesse. Eu sabia que a vida terrena é dura pra quem é mole porque mainha dizia pra gente e isso ficou na minha cabeça. E dava nas minhas pernas com uma taca de couro cru, seco, preto como quem morre esturricado. Quando não tava tirando meu sangue, tava escondida nas telhas como uma jaracuçu-pico-de-jaca trepada na jaqueira esperando mané rodar a cara e ganhar dela um bote. Era melhor que ficasse escondida mesmo, senão eu pegava e jogava ela na rodagem. E se meu pai me pegasse na rodagem, adeus eu. Que eu não era quenga pra andar em rodagem. Eu tenho pra mim que jogaram uma praga no velho... porque quenga eu nunca quis ser. Se eu disser que eu tomei gosto pela rodagem vô tá mentindo, mas sei lá ... com pouca aparecia um homem pra me tirar dali. E naquelas épocas era só o que eu queria. E era um querer tão grande. Mas todos me devolviam pra rodagem e isso me deixava louca. Iam à diante, paravam num posto, ou não, e me largavam lá, ou em qualquer lugar na rodagem. Mesmo que fosse só um pedido de carona. Essas marcas na cara foram tudo desse tempo. Se não fosse Jeová Deus passando na frente, agora eu tava morta de tiro, eu tava fudida com a Aids. Vixe! valei-me Divino Espírito Santo! Jeová Deus, segure minha língua! Ói, vô dizê uma coisa: Quem me tirou dalí foi o homem mais maravilhoso do mundo que se chama Jeová Deus que me livrou das armadilhas de Satanás. Aleluia. Teve uma noite que Ele ouviu meu coração batendo numa rapidez tão grande e numa ardência tão grande. Uma voz grave a Dele falando grosso, mas suave gostoso, sabe como é? Eu não tive medo porque eu sabia que era Ele. Você pode até estranhar a revelação da Divina Providência, mas é coisa que se sabe sem saber antes, é coisa que há muito tempo, muito tempo mesmo, a gente já conhece. Mas aí vem na forma da revelação, como se fosse coisa nova na alma da gente. Mas Jeová Deus é maravilhoso e sabe que a gente já sabia, e que eu só não tava sabendo sabendo porque o Pai da Mentira tem a artimanha de escurecer a mente da pessoa e a gente fica sem saber que sabe. Eu não tive medo.

Vixe que era uma ardência tão grande no meu peito nessas épocas que eu nem sei! Uma vontade de não sei o que. Uma confusão tão grande na minha cabeça. Mas era o Enganador maior do mundo atrapalhando meu pensar. Mas o sangue de Cristo tem poder e foi lavando devagar minha alma. Mas a impressão que eu tinha era que era o meu sangue que Ele usava. E quando eu já tava roxa de sangrar, Jeová Deus decidiu falar macio pro meu ouvido e falou: VÁ PRA ARACAJU. Eu me arrepiei todinha. Meu coração estremeceu. Mas eu já disse que não foi de medo. Se não fosse pecado falar assim eu diria que foi uma alegria doida, mas não doida de pedra, doida porque nessas horas não se sabe com o pensamento porque tá alegre: a carne toda estremece. Naquela noite o que eu não sabia mesmo era que Jeová Deus é misericordioso demais. Não sabia, isso eu não sabia mesmo. Aleluia. Eu bem sabia, é verdade, que ele existia, mas que ele cuidava direitinho das almas agoniadas eu não sabia. 

Minha tia falava Dele, mas eu só via ela chorando contando as desgraças dela pra minha mãe: ah, porque o finado Wilton fez isso e aquilo comigo – Jeová Deus tape suas ouça. As duas conversavam baixinho pra ninguém escutar, mas eu ficava era fingindo que dormia na rede e um dia eu ouvi minha tia dizendo que Wilton tinha pegado ela a pulso – tinha estuprado. Ói, repare! E marido estupra mulher? Gente da cabeça atrapalhada como eu tinha não tem como não pensar que Jeová Deus virou a cara pra pessoa.

Às vezes me vinha o pensamento de que no final de tudo a gente só ganha da vida terrena as lembranças do que foi triste e doído e os esquecimentos do que foi bom e do que foi alegre. E também a gente mistura tudo. Eu tenho pra mim que quase não tem o que eu esqueci. Parece que eu passei pelo tempo vendo tudo, sentindo tudo. Tudo ficando gravado na minha cara, no meu coração. Não tem como esquecer! O espelho também não deixa. Eu olho pra mim e é como que eu tô vendo um escândalo acontecer. Me dá uma vergonha tão grande de mim, me dá um medo tão grande de mim que eu chego a me espantar, repare só! Parece um escândalo eu existir!

sábado, 29 de junho de 2013

Todo o resto que diferença faz quando não se ama?





Aos poucos, estou me acostumando à ideia de que, no decorrer da minha vida, perderei meus pais e meus amigos, ou que eles me perderão. Não será fácil me acostumar definitivamente a essa ideia já que (fazendo minhas as palavras de Bartolomeu Campos de Queirós) não é com delicadeza que se desfaz o laço que nos une à mãe, e aí penso que assim também ocorre com os amigos. Há de se ter sempre sangue e lágrimas. Mas eis que lendo o "Patrimônio" do Philip Roth, em que ele narra os últimos dias do pai enfermo com um tumor enorme que sufoca o cérebro, ele revela o comportamento heroico do pai para consigo mesmo, ainda que definhando e com a certeza de que nada o livrará das agruras daquela condição e de que nada o livrará da morte, não de uma morte não sentida, mas de uma morte em que se sente se aproximando o fim, aos poucos, da forma mais dolorida. No meio do livro o Roth filho pergunta, ao telefone, a uma amiga antiga que tal qual o Roth pai, tinha a capacidade de sobreviver, a inteligência de sobreviver: "Sei qual é a origem das fraquezas das pessoas, todos nós sabemos, mas de onde vem a força?" Parei por enquanto a leitura porque me foi revelado algo de extrema importância. Por isso parei e vim aqui compartilhar com meus amigos e minha família tal revelação: Da vontade de viver, pensei, da vontade de enfrentar o que me dá a vida, de encará-la. Ou será que da fé? Da crença em si mesmo, da crença em um Deus, ou da fé em si mesmo, pura e simplesmente? ou da autoestima, como disse a amiga do Philip? Eu vejo que, seja fé, crença em alguém ou em alguma coisa, seja a vontade de viver, qualquer uma dessas coisas, são coisas que existem unicamente em pensamento. Nada disso existe personificado ou materializado, mas mesmo assim existem em pensamento, de algum modo construídas, inventadas, criadas, imaginadas, mas todas essas coisas existem apenas em pensamento e não apenas, elas dinamizam a vida, elas movem qualquer um que se deixar ser movido ao mesmo tempo em que faz uso delas, consciente ou inconscientemente. É DO QUE NÃO EXISTE ou do existe só em pensamento que extraímos nossas forças. E ISSO é grande demais! Isso é GRANDE DEMAIS! É disso que extraímos nossas forças. É da fé, da vontade de que tudo seja diferente que extraímos a força que dinamiza nossas íntimas revoluções, nossos auto-salvamentos! Que alívio que vez ou outra me vem certas revelações, que sempre estiveram em meus pensamentos mas que, com freqüência, as esqueço. Recomendo o livro citado e também o "Vermelho Amargo" do Bartolomeu. Dilacerantes mas como tudo o que é dilacerante: cheios de vida, cheios de lembranças e esquecimentos.

Ainda que seja talvez clichê a ideia ou medo fixo de perder quem eu amo, isso me faz ressignificar a vida e dessa ressignificação dos meus sentidos de existência eu nunca abrirei mão. Que venha o ordinário despertar. 

É isso que me dinamiza e é isso que me ajuda seguir vivendo. E "a coisa mais importante do mundo é o sentimento", bem disse Adélia Prado. 

Todo resto, todo o resto que diferença faz quando não se ama?

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Gargalhadas, merda e sangue



Sônia atravessou o condomínio trepidante, com uma bomba atômica no lugar do coração. No segundo 00,01, no instante último antes da explosão, quando já sentia o cogumelo ardente subindo e lhe corroendo os músculos da garganta, trancou os dentes como a uma comporta. Subiu, aos solavancos, as escadas de seu prédio, até apoiar-se na pia da cozinha. A essa altura já babava. Os olhos esbugalhados sobre o horror do encontro da saliva quente com as baratas... que surgiam do ralo tagarelando desgraças, em fila. Respirava como uma asmática em épocas de crise, com entulhos lhe entupindo a glote. Quando mais nada lhe atravessou o esôfago, revirou os olhos e caiu.
Uma hora depois, bem ao longe, enquanto vagava como sombra de flecha em suas cavernas íntimas, ouviu ecos das profundezas, que viam numa dinâmica louca e sonoridade fantasmagórica, e se misturavam ao lodo cavernoso, subindo as paredes como se não houvesse gravidade, deslizando pelo teto como lagartas de fogo a deixarem estranhas cicatrizes. Desse lugar, pensou – “tem gente aí”.
Levantou-se ainda zonza e abriu a porta devagar, sem esperança e com olhar de pedra. Por dois segundos fitou o rodapé da parede à frente. Encostou de volta a porta com delicadeza, mas sem demora. Os chinelos arrastavam a tarde. Acendeu um cigarro e sentou-se entregue – antes afastou um pouco a cadeira ao lado, ajeitando o lugar. Vez em quando balançava o pezinho e coçava as pernas secas e manchadas. Há anos a esperar por contas e só.
Resmungou sua voz grave “Num sei que gota de doença é essa! Fogo brabo na goela. Ainda se fosse na xereca!” riu mordendo o riso, estalando a garganta, como se tossisse, quando...
Jorge, aos poucos, se materializou pálido, morto vivo, sobre a luz que entrava saliente pela janela. Ela o recebeu como o receberia há 30 anos, com olhos inchados e vermelhos de ódio.
“Perfumava minha xana, seu fila da puta, pra você comer. Preferiu a boceta gorda de Lourdes. Fodia melhor que a minha, era? Eu sei que fedia. E se dizia minha amiga. Fila da puta mastigou meu homem. Homem, não, que você não é homem, você é um cacete e não passa disso”. Jorge, como há 30 anos, ouviu como um cachorro covarde. Ela continuou – “Ontem percebi o quanto é seco meu buraco... o da boceta, claro, sempre fui uma idiota escrota que nunca deu o cu. Meu cu é virgem... um cu virgem de 73 anos. Pra que porra serve além de cagar esse meu cu? Nunca nem tentei, acredita?” ri baixo e rouca “E você sabia que nem sei porque. Num lembro bem, mas no início era medo do inferno. Mas agora eu mudei, sabe Jorge? Quero dar o cu, sabe?”
Calou-se. Sumiram as palavras entre uma golada no café e o dissipar da fumaça do cigarro. Fumaça grossa, carregada. E antes da baforada pesada na cara daquele espectro ridículo, sem querer, viu o resto da morte. Uma gota pingou na pia, entrecortando o silêncio.
“Nunca dei meu cu – disse pasma”.
“...”
“Até você, ordinário, comedor de boceta, já arreganhou a bunda. Meu cu me tomou, cara, meu cu me tomou. Sou pregas e pelos. Uma senhora cu de boceta seca.”
“E o Marcelão?” – perguntou Jorge com o nariz a se enterrar na cara, que se movia com a leveza da fumaça.
“Que Marcelão, o militar?” enrijecendo a voz.
“Sim, era marinheiro, não era?” apertando os olhos, deformando as bochechas claras.
“Acho que era” ligeiramente calma.
“Não te enrabou?”
“Não” chupou com gosto o cigarro, salivando até.
“Se fez de donzela pra ele?” Jorge pensando ser irônico.
“Donzela o caralho! Nunca me fiz de donzela pra porra de macho nenhum. Tenho puta no nomeeee: Sônia Beatriz Puta Rodrigues. Novinha eu ia sem calcinha pro coléégio” arreganhando a boca “no banheirinho em baixo da goiabeiraaaaaa”.
Ri desesperadamente. Gargalha cheia. Os ombros sobem e descem rápidos, sobem e descem rápidos. Faltavam-lhe dentes, nota Jorge movendo a cabeça, transfigurado. Os que restavam, acinzentados.
Sônia bate a pontinha do cigarro no cinzeiro, recoloca no bico, chupa forte, bafora.
“Tanta dedada” - toca excitada o braço de Jorge, que sorri meio sorriso sem graça, com o queixo na testa.
“Ai ai ... pois é....” ela diz “era só o que faltava a essa altura. Mas e você, hein? Vilma te abandonou, que eu sei. E faz tempo. E o garotão, hein? Ricardo, não era? Que fim levou?”
“Conheceu um médico na Internet. Foram pra Espanha. Foram casar. E Cezinha?”
“Quem quer ser filho de puta? Achou uma cadelinha de família e foram embora. O nome é Laurinha. Os pais eram baba ovo do bispo aqui da matriz. Foram embora. Me disse que se eu me aproximar é capaz de me colocar a sete palmos. Isso porque não quis saber da baboseira da bíblia lá deles. Mas não tinha aquela, como é que é? Santa Madalena, como é que é? Santa Madalena Arrependiiiidaaaa” Gargalhou como louca pra que ouvissem  todos do condomínio, todos do mundo todo.
Embebida em ira empurrou feroz a bituca no meio do cinzeiro. Olhos vermelho-sangue.
“Eu não me arrependo de porra nenhuma! Vão se foder, ele e Laurinha” gritou. Ouviu-se, depois, apenas sua respiração – respirava como roncam os porcos.
Jorge foi devagar até a porta. Antes de fechá-la, voltou e resgatou sua cintura e as pernas ainda sentadas. Mas aquele era o último dia em que o veria em pedaços. Jorge desapareceria de uma vez.
Quem entrasse no apartamento no instante que se seguiu, veria primeiro as paredes da sala, escuras como em casas amaldiçoadas por espíritos imundos. Em seguida, jogado na cama, um corpo fêmeo, murcho e seco, coberto de manchas e cicatrizes. E ao lado desse corpo, melando os lençóis, um cabo antigo de vassoura, sujo de merda e sangue. Os olhos a moverem-se lentos. Ninguém no mundo sabendo que havia uma morta ali.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

os pássaros guardam
segredos de nuvens
pessoas em seus aviões
param nunca para ouví-las
quando caem dos céus
não clamam por elas
os pássaros nelas se bronzeiam
erguem reinos, viram reis
as nuvens a tudo sustentam
só as pessoas despecam



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intimidade rasa tenho eu
com as palavras
mas a vida inteira amigo
dos segredos que lhes maremotam
meu miserável vocabulário
meu vasto e profundo
oceano de silêncio