domingo, 30 de junho de 2013

JEOVÁ DEUS (I)



A ardência no meu coração já era Jeová Deus se apoderando do que era dele, sem que eu percebesse. Eu sabia que a vida terrena é dura pra quem é mole porque mainha dizia pra gente e isso ficou na minha cabeça. E dava nas minhas pernas com uma taca de couro cru, seco, preto como quem morre esturricado. Quando não tava tirando meu sangue, tava escondida nas telhas como uma jaracuçu-pico-de-jaca trepada na jaqueira esperando mané rodar a cara e ganhar dela um bote. Era melhor que ficasse escondida mesmo, senão eu pegava e jogava ela na rodagem. E se meu pai me pegasse na rodagem, adeus eu. Que eu não era quenga pra andar em rodagem. Eu tenho pra mim que jogaram uma praga no velho... porque quenga eu nunca quis ser. Se eu disser que eu tomei gosto pela rodagem vô tá mentindo, mas sei lá ... com pouca aparecia um homem pra me tirar dali. E naquelas épocas era só o que eu queria. E era um querer tão grande. Mas todos me devolviam pra rodagem e isso me deixava louca. Iam à diante, paravam num posto, ou não, e me largavam lá, ou em qualquer lugar na rodagem. Mesmo que fosse só um pedido de carona. Essas marcas na cara foram tudo desse tempo. Se não fosse Jeová Deus passando na frente, agora eu tava morta de tiro, eu tava fudida com a Aids. Vixe! valei-me Divino Espírito Santo! Jeová Deus, segure minha língua! Ói, vô dizê uma coisa: Quem me tirou dalí foi o homem mais maravilhoso do mundo que se chama Jeová Deus que me livrou das armadilhas de Satanás. Aleluia. Teve uma noite que Ele ouviu meu coração batendo numa rapidez tão grande e numa ardência tão grande. Uma voz grave a Dele falando grosso, mas suave gostoso, sabe como é? Eu não tive medo porque eu sabia que era Ele. Você pode até estranhar a revelação da Divina Providência, mas é coisa que se sabe sem saber antes, é coisa que há muito tempo, muito tempo mesmo, a gente já conhece. Mas aí vem na forma da revelação, como se fosse coisa nova na alma da gente. Mas Jeová Deus é maravilhoso e sabe que a gente já sabia, e que eu só não tava sabendo sabendo porque o Pai da Mentira tem a artimanha de escurecer a mente da pessoa e a gente fica sem saber que sabe. Eu não tive medo.

Vixe que era uma ardência tão grande no meu peito nessas épocas que eu nem sei! Uma vontade de não sei o que. Uma confusão tão grande na minha cabeça. Mas era o Enganador maior do mundo atrapalhando meu pensar. Mas o sangue de Cristo tem poder e foi lavando devagar minha alma. Mas a impressão que eu tinha era que era o meu sangue que Ele usava. E quando eu já tava roxa de sangrar, Jeová Deus decidiu falar macio pro meu ouvido e falou: VÁ PRA ARACAJU. Eu me arrepiei todinha. Meu coração estremeceu. Mas eu já disse que não foi de medo. Se não fosse pecado falar assim eu diria que foi uma alegria doida, mas não doida de pedra, doida porque nessas horas não se sabe com o pensamento porque tá alegre: a carne toda estremece. Naquela noite o que eu não sabia mesmo era que Jeová Deus é misericordioso demais. Não sabia, isso eu não sabia mesmo. Aleluia. Eu bem sabia, é verdade, que ele existia, mas que ele cuidava direitinho das almas agoniadas eu não sabia. 

Minha tia falava Dele, mas eu só via ela chorando contando as desgraças dela pra minha mãe: ah, porque o finado Wilton fez isso e aquilo comigo – Jeová Deus tape suas ouça. As duas conversavam baixinho pra ninguém escutar, mas eu ficava era fingindo que dormia na rede e um dia eu ouvi minha tia dizendo que Wilton tinha pegado ela a pulso – tinha estuprado. Ói, repare! E marido estupra mulher? Gente da cabeça atrapalhada como eu tinha não tem como não pensar que Jeová Deus virou a cara pra pessoa.

Às vezes me vinha o pensamento de que no final de tudo a gente só ganha da vida terrena as lembranças do que foi triste e doído e os esquecimentos do que foi bom e do que foi alegre. E também a gente mistura tudo. Eu tenho pra mim que quase não tem o que eu esqueci. Parece que eu passei pelo tempo vendo tudo, sentindo tudo. Tudo ficando gravado na minha cara, no meu coração. Não tem como esquecer! O espelho também não deixa. Eu olho pra mim e é como que eu tô vendo um escândalo acontecer. Me dá uma vergonha tão grande de mim, me dá um medo tão grande de mim que eu chego a me espantar, repare só! Parece um escândalo eu existir!

sábado, 29 de junho de 2013

Todo o resto que diferença faz quando não se ama?





Aos poucos, estou me acostumando à ideia de que, no decorrer da minha vida, perderei meus pais e meus amigos, ou que eles me perderão. Não será fácil me acostumar definitivamente a essa ideia já que (fazendo minhas as palavras de Bartolomeu Campos de Queirós) não é com delicadeza que se desfaz o laço que nos une à mãe, e aí penso que assim também ocorre com os amigos. Há de se ter sempre sangue e lágrimas. Mas eis que lendo o "Patrimônio" do Philip Roth, em que ele narra os últimos dias do pai enfermo com um tumor enorme que sufoca o cérebro, ele revela o comportamento heroico do pai para consigo mesmo, ainda que definhando e com a certeza de que nada o livrará das agruras daquela condição e de que nada o livrará da morte, não de uma morte não sentida, mas de uma morte em que se sente se aproximando o fim, aos poucos, da forma mais dolorida. No meio do livro o Roth filho pergunta, ao telefone, a uma amiga antiga que tal qual o Roth pai, tinha a capacidade de sobreviver, a inteligência de sobreviver: "Sei qual é a origem das fraquezas das pessoas, todos nós sabemos, mas de onde vem a força?" Parei por enquanto a leitura porque me foi revelado algo de extrema importância. Por isso parei e vim aqui compartilhar com meus amigos e minha família tal revelação: Da vontade de viver, pensei, da vontade de enfrentar o que me dá a vida, de encará-la. Ou será que da fé? Da crença em si mesmo, da crença em um Deus, ou da fé em si mesmo, pura e simplesmente? ou da autoestima, como disse a amiga do Philip? Eu vejo que, seja fé, crença em alguém ou em alguma coisa, seja a vontade de viver, qualquer uma dessas coisas, são coisas que existem unicamente em pensamento. Nada disso existe personificado ou materializado, mas mesmo assim existem em pensamento, de algum modo construídas, inventadas, criadas, imaginadas, mas todas essas coisas existem apenas em pensamento e não apenas, elas dinamizam a vida, elas movem qualquer um que se deixar ser movido ao mesmo tempo em que faz uso delas, consciente ou inconscientemente. É DO QUE NÃO EXISTE ou do existe só em pensamento que extraímos nossas forças. E ISSO é grande demais! Isso é GRANDE DEMAIS! É disso que extraímos nossas forças. É da fé, da vontade de que tudo seja diferente que extraímos a força que dinamiza nossas íntimas revoluções, nossos auto-salvamentos! Que alívio que vez ou outra me vem certas revelações, que sempre estiveram em meus pensamentos mas que, com freqüência, as esqueço. Recomendo o livro citado e também o "Vermelho Amargo" do Bartolomeu. Dilacerantes mas como tudo o que é dilacerante: cheios de vida, cheios de lembranças e esquecimentos.

Ainda que seja talvez clichê a ideia ou medo fixo de perder quem eu amo, isso me faz ressignificar a vida e dessa ressignificação dos meus sentidos de existência eu nunca abrirei mão. Que venha o ordinário despertar. 

É isso que me dinamiza e é isso que me ajuda seguir vivendo. E "a coisa mais importante do mundo é o sentimento", bem disse Adélia Prado. 

Todo resto, todo o resto que diferença faz quando não se ama?