
No fundo de seu flat, uma gota pingava sobre a superfície limpa e  seca da pia da cozinha. Não havia mais pratos por lavar, nem talheres e  pires. As xícaras estavam todas guardadas no armário. O chão brilhava.  No ar uma lavanda, um cheiro bom de lírios. Na janela do apartamento,  naquela cidade imensa, estava a moça. Que não era para estar ali, no  ermo do mundo, na verdade. Era moça pra ser vista, ter-lhe envios de  beijos e sorrisos, ser musa dos sonhos, dos poemas e músicas dos outros.  Não era a moça feia da música do Chico. Não, não era. Era menina por  demais bonita, no lugar errado. Se alguém pudesse vê-la. Mas aquela era  uma cidade graúda demais. Pra que isso tudo? Uma cidade de ninguém pra  uma moça tão grande como ela. Um desperdício pra humanidade. Ela nada  precisava além de um canto nas vistas dos outros. Aí sim, neguinho ia  ver. Mas ali na janela a pessoa é ninguém demais. Até pra ela que é  tanta coisa.
Das coisas sobre as quais mais escrevia no  caderninho de notas, um caderno resguardado, sem borrões, letras  jeitosas, pronto para ser desvendado, saudade e felicidade eram as mais  comentadas. Estavam nas poesias, nas marchinhas compostas na cabeça da  moça. É que para ela, enfatizava, “saudade não é felicidade”. Saudade é  sentimento longe que dói perto, cravado na pele. Felicidade, não.  Felicidade era “uma coisa outra”. Palavras que não rimam. Felicidade se  sente perto de perto. Mas era coisa sentida lá fora, na calçada, não ali  dentro. No peito daquele menino, na cara daquela mulher. O que tinha  para fazer era pintar e escrever.  Dava um prazer pintar, deslizar o  pincel. Triste era guardar os quadros, fechar o caderno, deitar na cama e  não dormir. Pintar e escrever eram a passagem rápida da felicidade por  ali. Coisa de instantes, nem percebida pela moça.
Estava  pintando uma menina observando um peixinho dourado no aquário quando  pensou em sair e comprar mais tintas, solventes e pincéis. Sentou-se  sobre a cama com um vidro de perfume nas mãos. Inerte por alguns  segundos decidiu abri-lo. Pôs uma gota num dos pulsos e esfregou-os um  contra o outro. Um pouco também atrás das orelhas e entre os seios. Por  onde andasse levaria um cheiro bom de flores miúdas. Pra que mais? Na  rua, na loja, no mercado de flores, que diferença faria? A chuva está  chegando. Disse ela em murmúrios, sem que alguém pudesse ouvir. Medo que  a chamassem de louca. Gente reunida ali perto. Bebiam e conversavam.  Repetiu como se a contar um segredo sórdido às orelhas do vento: a chuva  está chegando.  Ouviu o tilintar das taças e o comprimir das gargantas.  De repente, misturando-se ao doce aroma do vinho, um forte odor de  lama. Era hora de voltar.
O ônibus chacoalhava e as  janelas tremiam. Chovia pesado. Ela tentava se segurar nas barras de  ferro, e falar ao mesmo tempo com o cobrador. Falou uma coisa que ele  não conseguiu ouvir. “O que você disse?” Sua voz pequena era sonzinho  insignificante ante a barulheira do trânsito, dos motores e das vozes  mais altas. O ônibus parou na esquina, ela desceu e, da calçada, olhou  para cima, para janela do apartamento. Estava trancada. Dentro, o vazio  mais completo. Foi até o quarto, sentou-se sobre a cama. Estava tarde.  Era quase meia noite. O que tanto fazia na rua? Trovejou. O barulho a  despertou da letargia de si. O barulho foi ensurdecedor. Com uma alegria  nervosa, pendeu o corpo para o lado. Encostou a cabeça sobre os lençóis  amarrotados e pensou “quando eu morrer tomara que eu lembre antes de  pensar numa coisa boa, que é pra eu sonhar com  ela.”