Sônia atravessou o
condomínio trepidante, com uma bomba atômica no lugar do coração. No segundo
00,01, no instante último antes da explosão, quando já sentia o cogumelo ardente
subindo e lhe corroendo os músculos da garganta, trancou os dentes como a uma
comporta. Subiu, aos solavancos, as escadas de seu prédio, até apoiar-se na pia
da cozinha. A essa altura já babava. Os olhos esbugalhados sobre o horror do
encontro da saliva quente com as baratas... que surgiam do ralo tagarelando
desgraças, em fila. Respirava como uma asmática em épocas de crise, com entulhos
lhe entupindo a glote. Quando mais nada lhe atravessou o esôfago, revirou os
olhos e caiu.
Uma hora depois, bem ao
longe, enquanto vagava como sombra de flecha em suas cavernas íntimas, ouviu
ecos das profundezas, que viam numa dinâmica louca e sonoridade fantasmagórica,
e se misturavam ao lodo cavernoso, subindo as paredes como se não houvesse
gravidade, deslizando pelo teto como lagartas de fogo a deixarem estranhas cicatrizes.
Desse lugar, pensou – “tem gente aí”.
Levantou-se ainda zonza e abriu
a porta devagar, sem esperança e com olhar de pedra. Por dois segundos fitou o
rodapé da parede à frente. Encostou de volta a porta com delicadeza, mas sem
demora. Os chinelos arrastavam a tarde. Acendeu
um cigarro e sentou-se entregue – antes afastou um pouco a cadeira ao lado, ajeitando
o lugar. Vez em quando balançava o
pezinho e coçava as pernas secas e manchadas. Há anos a esperar por contas e
só.
Resmungou
sua voz grave “Num sei que gota de doença é essa! Fogo brabo na goela. Ainda se
fosse na xereca!” riu mordendo o riso, estalando a garganta, como se tossisse,
quando...
Jorge,
aos poucos, se materializou pálido, morto vivo, sobre a luz que entrava saliente
pela janela. Ela o recebeu como o receberia há 30 anos, com olhos inchados e
vermelhos de ódio.
“Perfumava
minha xana, seu fila da puta, pra você comer. Preferiu a boceta gorda de
Lourdes. Fodia melhor que a minha, era? Eu sei que fedia. E se dizia minha
amiga. Fila da puta mastigou meu homem. Homem, não, que você não é homem, você
é um cacete e não passa disso”. Jorge, como há 30 anos, ouviu como um cachorro
covarde. Ela continuou – “Ontem percebi o quanto é seco meu buraco... o da
boceta, claro, sempre fui uma idiota escrota que nunca deu o cu. Meu cu é
virgem... um cu virgem de 73 anos. Pra que porra serve além de cagar esse meu
cu? Nunca nem tentei, acredita?” ri baixo e rouca “E você sabia que nem sei
porque. Num lembro bem, mas no início era medo do inferno. Mas agora eu mudei,
sabe Jorge? Quero dar o cu, sabe?”
Calou-se.
Sumiram as palavras entre uma golada no café e o dissipar da fumaça do cigarro.
Fumaça grossa, carregada. E antes da baforada pesada na cara daquele espectro ridículo,
sem querer, viu o resto da morte. Uma gota pingou na pia, entrecortando o
silêncio.
“Nunca
dei meu cu – disse pasma”.
“...”
“Até
você, ordinário, comedor de boceta, já arreganhou a bunda. Meu cu me tomou,
cara, meu cu me tomou. Sou pregas e pelos. Uma senhora cu de boceta seca.”
“E
o Marcelão?” – perguntou Jorge com o nariz a se enterrar na cara, que se movia
com a leveza da fumaça.
“Que
Marcelão, o militar?” enrijecendo a voz.
“Sim,
era marinheiro, não era?” apertando os olhos, deformando as bochechas claras.
“Acho
que era” ligeiramente calma.
“Não
te enrabou?”
“Não”
chupou com gosto o cigarro, salivando até.
“Se
fez de donzela pra ele?” Jorge pensando ser irônico.
“Donzela
o caralho! Nunca me fiz de donzela pra porra de macho nenhum. Tenho puta no
nomeeee: Sônia Beatriz Puta Rodrigues. Novinha eu ia sem calcinha pro coléégio”
arreganhando a boca “no banheirinho em baixo da goiabeiraaaaaa”.
Ri
desesperadamente. Gargalha cheia. Os ombros sobem e descem rápidos, sobem e
descem rápidos. Faltavam-lhe dentes, nota Jorge movendo a cabeça, transfigurado.
Os que restavam, acinzentados.
Sônia
bate a pontinha do cigarro no cinzeiro, recoloca no bico, chupa forte, bafora.
“Tanta
dedada” - toca excitada o braço de Jorge, que sorri meio sorriso sem graça, com o queixo na testa.
“Ai
ai ... pois é....” ela diz “era só o que faltava a essa altura. Mas e você,
hein? Vilma te abandonou, que eu sei. E faz tempo. E o garotão, hein? Ricardo,
não era? Que fim levou?”
“Conheceu
um médico na Internet. Foram pra Espanha. Foram casar. E Cezinha?”
“Quem
quer ser filho de puta? Achou uma cadelinha de família e foram embora. O nome é
Laurinha. Os pais eram baba ovo do bispo aqui da matriz. Foram embora. Me disse
que se eu me aproximar é capaz de me colocar a sete palmos. Isso porque não
quis saber da baboseira da bíblia lá deles. Mas não tinha aquela, como é que é?
Santa Madalena, como é que é? Santa Madalena Arrependiiiidaaaa” Gargalhou como louca
pra que ouvissem todos do condomínio,
todos do mundo todo.
Embebida
em ira empurrou feroz a bituca no meio do cinzeiro. Olhos vermelho-sangue.
“Eu
não me arrependo de porra nenhuma! Vão se foder, ele e Laurinha” gritou. Ouviu-se,
depois, apenas sua respiração – respirava como roncam os porcos.
Jorge
foi devagar até a porta. Antes de fechá-la, voltou e resgatou sua cintura e as
pernas ainda sentadas. Mas aquele era o último dia em que o veria em pedaços.
Jorge desapareceria de uma vez.
Quem
entrasse no apartamento no instante que se seguiu, veria primeiro as paredes da
sala, escuras como em casas amaldiçoadas por espíritos imundos. Em seguida,
jogado na cama, um corpo fêmeo, murcho e seco, coberto de manchas e cicatrizes. E ao lado
desse corpo, melando os lençóis, um cabo antigo de vassoura, sujo de merda e
sangue. Os olhos a moverem-se lentos. Ninguém no mundo sabendo que havia uma morta
ali.
Ninguém é uma palavra muito forte...
ResponderExcluirAlguém sabia, alguém sentia a tal morte...
Vim atrás de Jeová-Deus parte II.
Não encontrei, mas soube da tal morte.
E senti...
Pura e simplesmente!
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ninguém é palavra muito forte, querido. muito forte. tanto quanto sua presença. beijo e, graças ao Deus, nos veremos muito ainda nessa vida. eu sinto.
ResponderExcluirJeová Deus é coisa que preparo para Alguém. Termino por esses dias e coloco aqui. achei melhor esperar. não sei pra que, mas achei melhor esperar.
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