quinta-feira, 16 de maio de 2013

Gargalhadas, merda e sangue



Sônia atravessou o condomínio trepidante, com uma bomba atômica no lugar do coração. No segundo 00,01, no instante último antes da explosão, quando já sentia o cogumelo ardente subindo e lhe corroendo os músculos da garganta, trancou os dentes como a uma comporta. Subiu, aos solavancos, as escadas de seu prédio, até apoiar-se na pia da cozinha. A essa altura já babava. Os olhos esbugalhados sobre o horror do encontro da saliva quente com as baratas... que surgiam do ralo tagarelando desgraças, em fila. Respirava como uma asmática em épocas de crise, com entulhos lhe entupindo a glote. Quando mais nada lhe atravessou o esôfago, revirou os olhos e caiu.
Uma hora depois, bem ao longe, enquanto vagava como sombra de flecha em suas cavernas íntimas, ouviu ecos das profundezas, que viam numa dinâmica louca e sonoridade fantasmagórica, e se misturavam ao lodo cavernoso, subindo as paredes como se não houvesse gravidade, deslizando pelo teto como lagartas de fogo a deixarem estranhas cicatrizes. Desse lugar, pensou – “tem gente aí”.
Levantou-se ainda zonza e abriu a porta devagar, sem esperança e com olhar de pedra. Por dois segundos fitou o rodapé da parede à frente. Encostou de volta a porta com delicadeza, mas sem demora. Os chinelos arrastavam a tarde. Acendeu um cigarro e sentou-se entregue – antes afastou um pouco a cadeira ao lado, ajeitando o lugar. Vez em quando balançava o pezinho e coçava as pernas secas e manchadas. Há anos a esperar por contas e só.
Resmungou sua voz grave “Num sei que gota de doença é essa! Fogo brabo na goela. Ainda se fosse na xereca!” riu mordendo o riso, estalando a garganta, como se tossisse, quando...
Jorge, aos poucos, se materializou pálido, morto vivo, sobre a luz que entrava saliente pela janela. Ela o recebeu como o receberia há 30 anos, com olhos inchados e vermelhos de ódio.
“Perfumava minha xana, seu fila da puta, pra você comer. Preferiu a boceta gorda de Lourdes. Fodia melhor que a minha, era? Eu sei que fedia. E se dizia minha amiga. Fila da puta mastigou meu homem. Homem, não, que você não é homem, você é um cacete e não passa disso”. Jorge, como há 30 anos, ouviu como um cachorro covarde. Ela continuou – “Ontem percebi o quanto é seco meu buraco... o da boceta, claro, sempre fui uma idiota escrota que nunca deu o cu. Meu cu é virgem... um cu virgem de 73 anos. Pra que porra serve além de cagar esse meu cu? Nunca nem tentei, acredita?” ri baixo e rouca “E você sabia que nem sei porque. Num lembro bem, mas no início era medo do inferno. Mas agora eu mudei, sabe Jorge? Quero dar o cu, sabe?”
Calou-se. Sumiram as palavras entre uma golada no café e o dissipar da fumaça do cigarro. Fumaça grossa, carregada. E antes da baforada pesada na cara daquele espectro ridículo, sem querer, viu o resto da morte. Uma gota pingou na pia, entrecortando o silêncio.
“Nunca dei meu cu – disse pasma”.
“...”
“Até você, ordinário, comedor de boceta, já arreganhou a bunda. Meu cu me tomou, cara, meu cu me tomou. Sou pregas e pelos. Uma senhora cu de boceta seca.”
“E o Marcelão?” – perguntou Jorge com o nariz a se enterrar na cara, que se movia com a leveza da fumaça.
“Que Marcelão, o militar?” enrijecendo a voz.
“Sim, era marinheiro, não era?” apertando os olhos, deformando as bochechas claras.
“Acho que era” ligeiramente calma.
“Não te enrabou?”
“Não” chupou com gosto o cigarro, salivando até.
“Se fez de donzela pra ele?” Jorge pensando ser irônico.
“Donzela o caralho! Nunca me fiz de donzela pra porra de macho nenhum. Tenho puta no nomeeee: Sônia Beatriz Puta Rodrigues. Novinha eu ia sem calcinha pro coléégio” arreganhando a boca “no banheirinho em baixo da goiabeiraaaaaa”.
Ri desesperadamente. Gargalha cheia. Os ombros sobem e descem rápidos, sobem e descem rápidos. Faltavam-lhe dentes, nota Jorge movendo a cabeça, transfigurado. Os que restavam, acinzentados.
Sônia bate a pontinha do cigarro no cinzeiro, recoloca no bico, chupa forte, bafora.
“Tanta dedada” - toca excitada o braço de Jorge, que sorri meio sorriso sem graça, com o queixo na testa.
“Ai ai ... pois é....” ela diz “era só o que faltava a essa altura. Mas e você, hein? Vilma te abandonou, que eu sei. E faz tempo. E o garotão, hein? Ricardo, não era? Que fim levou?”
“Conheceu um médico na Internet. Foram pra Espanha. Foram casar. E Cezinha?”
“Quem quer ser filho de puta? Achou uma cadelinha de família e foram embora. O nome é Laurinha. Os pais eram baba ovo do bispo aqui da matriz. Foram embora. Me disse que se eu me aproximar é capaz de me colocar a sete palmos. Isso porque não quis saber da baboseira da bíblia lá deles. Mas não tinha aquela, como é que é? Santa Madalena, como é que é? Santa Madalena Arrependiiiidaaaa” Gargalhou como louca pra que ouvissem  todos do condomínio, todos do mundo todo.
Embebida em ira empurrou feroz a bituca no meio do cinzeiro. Olhos vermelho-sangue.
“Eu não me arrependo de porra nenhuma! Vão se foder, ele e Laurinha” gritou. Ouviu-se, depois, apenas sua respiração – respirava como roncam os porcos.
Jorge foi devagar até a porta. Antes de fechá-la, voltou e resgatou sua cintura e as pernas ainda sentadas. Mas aquele era o último dia em que o veria em pedaços. Jorge desapareceria de uma vez.
Quem entrasse no apartamento no instante que se seguiu, veria primeiro as paredes da sala, escuras como em casas amaldiçoadas por espíritos imundos. Em seguida, jogado na cama, um corpo fêmeo, murcho e seco, coberto de manchas e cicatrizes. E ao lado desse corpo, melando os lençóis, um cabo antigo de vassoura, sujo de merda e sangue. Os olhos a moverem-se lentos. Ninguém no mundo sabendo que havia uma morta ali.

3 comentários:

  1. Ninguém é uma palavra muito forte...

    Alguém sabia, alguém sentia a tal morte...

    Vim atrás de Jeová-Deus parte II.
    Não encontrei, mas soube da tal morte.
    E senti...

    Pura e simplesmente!

    WPC>

    ResponderExcluir
  2. ninguém é palavra muito forte, querido. muito forte. tanto quanto sua presença. beijo e, graças ao Deus, nos veremos muito ainda nessa vida. eu sinto.

    ResponderExcluir
  3. Jeová Deus é coisa que preparo para Alguém. Termino por esses dias e coloco aqui. achei melhor esperar. não sei pra que, mas achei melhor esperar.

    ResponderExcluir